Agricultura Urbana

2021-04-06
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Nos últimos anos tem-se assistido a um crescente desenvolvimento das áreas  urbanas a nível global. Contudo, este desenvolvimento tem ocorrido num modelo  distinto do que tradicionalmente acontecia - se antigamente encontrávamos cidades com limites bem discerníveis, hoje são mais dispersas, desagregadas e descontínuas - levando-nos a uma necessidade de reforçar a articulação entre espaços urbanos, suburbanos e rurais. Paralelamente, as alterações climáticas  têm contribuído para a instabilidade dos sistemas de produção e cadeia alimentar, bem como para a formação de grandes contrastes climáticos entre  regiões - provocando períodos longos de seca e de cheias e aumentando a  imprevisibilidade dos eventos climatéricos.

Também a procura por uma alimentação mais saudável e que tenha em vista a  preservação do ambiente tem despertado uma preocupação crescente  relativamente ao atual sistema alimentar. Coloca-se em questão a volatilidade  do preço dos alimentos, as questões ambientais relacionadas com os impactes  negativos da produção agrícola em larga escala, a obesidade, a subnutrição e  ainda a falta de segurança alimentar.

É neste cenário que surge o interesse em torno da agricultura urbana e das  vantagens da sua aplicação nos mais variados contextos: Poderá ela servir como resposta à escassez e instabilidade no abastecimento alimentar das cidades? Poderá ela contribuir para uma forma mais saudável e sustentável de fornecer alimentação a populações citadinas? Por fim, poderá ela ajudar na  criação de hábitos urbanos saudáveis e no equilíbrio ecológico de grandes áreas construídas?

Contextualização histórica


A agricultura surgiu na Pré-História, quando o ser humano deixou de ser um  animal exclusivamente recolector, e acompanhou o ritmo de crescimento das  populações. Contudo, a partir da Revolução Industrial, surge uma separação  entre duas realidades: por um lado, o trabalho rural e agrícola e, por outro,  a condição urbana, associada à indústria, ao comércio e aos serviços. Esta  cisão veio agravar as disparidades económicas entre grupos sociais.  Complementarmente, a ausência de contacto da população urbana com o meio  rural veio romper os conhecimentos que eram transmitidos entre gerações,  tornando a população citadina alheia aos modos de produção e origem dos  alimentos.


Com o surgimento de grandes cidades e metrópoles, a agricultura  distanciou-se destes espaços com base em argumentos sanitários, de gestão  urbana e mesmo estéticos. As novas tecnologias de transporte e de conservação  dos alimentos possibilitaram a larga distância entre os locais de consumo e  os de produção dos bens alimentares. A este fenómeno podemos também associar  a intensificação da ocupação do solo em meio urbano, já que implica o valor  económico do mesmo: este é tido como um obstáculo à prática da agricultura  urbana, já que outras atividades e funções apresentam ser mais lucrativas.


Como exemplo, na imagem abaixo podemos observar o Grande Halle de la  Villette, em  Paris, um antigo matadouro reconvertido em centro cultural. O que  anteriormente seria uma localidade vizinha à capital, com uma forte  componente agrícola e industrial, foi totalmente reformulada aquando da  intervenção de Haussmann - que propôs um plano higienista e previa a expansão  da cidade de Paris. Os meios produtivos de sustento à urbe foram empurrados  para as imediações.

Mas de que forma é que a relocalização da atividade agrícola tem  implicações na contemporaneidade?

Grande Halle de la Villette, Fotografia de 1860. Fonte: Paris Insiders Guide

Planeamento Urbano


Irrefletidamente, o sistema alimentar é tido como uma questão exclusivamente  rural e alheia ao espaço urbano. Todavia, o sistema alimentar tem um impacto  profundo em questões como a saúde pública, justiça social, a energia, água,  solo, transportes e o desenvolvimento económico - temáticas essas que  importam ao bom planeamento urbano. A produção alimentar é capaz de  transformar não apenas paisagens, mas também estruturas políticas, espaços  públicos, sociedade  e cidade.

Será fácil entendermos que as cidades, por representarem estruturas com um  baixo ou inexistente contributo para o setor económico primário (agricultura,  pecuária, extração de matéria prima, etc), se tornam necessariamente  dependentes de um mercado externo, constituindo  sistemas pouco resilientes a quebras na rede e com um funcionamento pouco  sustentável, dada a infra-estrutura necessária à sua existência. Atualmente, cresce cada vez mais a  intenção de dotar estas estruturas urbanas de uma capacidade produtiva que as  torna mais autónomas, aumentando a sua resiliência e suscetibilidade.  Neste âmbito surge a temática da  agricultura urbana, que podemos definir da seguinte forma:

“A agricultura urbana está localizada dentro (intra-urbana) ou na periferia  (periurbana) de uma localidade, cidade ou metrópole, e cultiva, produz,  processa e distribui uma diversidade de produtos alimentícios e  não-alimentícios, (re)utiliza largamente recursos humanos e materiais e,  produtos e serviços encontrados dentro e ao redor daquela área urbana, e por  sua vez, fornece recursos humanos e materiais, produtos e serviços para essa  mesma área urbana.” – Luc J.A. Mougeot, in "Urban Agriculture: Concept  and definition" (2000)

Diferenças entre agricultura urbana e rural


Esquema sistematizante da aplicação de agricultura urbana.

A agricultura é uma prática que se apresenta de formas variadas.  Distinguida entre rural e urbana, toma designações plurais mediante a sua  localização e natureza. Entre outros, estes tipos de agricultura  diferenciam-se principalmente pelo tipo de local onde a atividade é exercida,  o tipo de população, os sistemas de produção e a gestão ambiental dos  resíduos que dela resultam. Além destes, podemos considerar o tipo de parcela  agrícola de que se trata, o tempo disponibilizado à atividade, as tecnologias  produtivas e a motivação pessoal.

Tenhamos como exemplo as hortas urbanas: são iniciativas que privilegiam a  coesão social e a qualidade ambiental da cidade, com uma expressão crescente  em território nacional. Algumas vantagens desta prática consistem no  aproveitamento do lixo doméstico, no uso de espaços desocupados nas cidades,  na possível geração de renda e, ainda, na constituição de uma atividade  ocupacional.

Mapa de Lisboa com identificação da localização de Hortas Urbanas. Fonte: CML


No ano em que Lisboa foi eleita capital verde europeia, foram criados guias  de boas práticas em bem fazer e produzir alimentos saudáveis. O município  conta com 800 talhões de cultivo, em parques hortícolas municipais, acima  identificados na figura. O  acesso aos  talhões é feito através de concurso público e distribuído conforme a  proximidade de residência dos candidatos, onde só se pode praticar agricultura  biológica. Os alimentos que nascem nestas hortas são utilizados sobretudo  para consumo em casa e o seu objetivo passa por promover um modo de vida mais  sustentável.

Tendências e Movimentos


Um pouco por todo o mundo replicam-se as iniciativas de agricultura  urbana. Aqui expomos alguns desses conceitos e movimentos:

Hells Kitchen Farm Project. Fonte: Archdaily


locavore
O termo "locavore" surgiu em 2005 na Califórnia, resultado da  contração das palavras “local” e “vore” (devorar). O conceito assenta na  ideia de que ao consumir alimentos regionais o consumidor estará a contribuir  para a economia e para a criação de postos de trabalho na comunidade.

potato movement
Movimento com expressão em cidades gregas, que visa aproximar os produtores  dos consumidores em cadeias de abastecimento curtas, passando por eliminar  intermediários no processo. Esta estratégia de política alimentar visa  reforçar a justiça social.

slow food movement
Iniciado por Carlo Petrini em 1986, tem como mote o contrário de “fast food”. A filosofia por detrás assenta em conhecer a origem dos alimentos e o  trajeto até ao consumidor.

food security
Conceito que se prende com o acesso e disponibilidade dos alimentos - no  que toca ao poder de compra dos consumidores mas também na comercialização e  distribuição dos alimentos.

food safety
Expressão que visa a qualidade dos alimentos, conservação e qualidade da  produção, a utilização de fitofármacos durante a produção e a qualidade da  água utilizada.

farmers markets
Iniciativa que tem como objetivo aproximar os produtores dos  consumidores.

Além destes conceitos, salientamos dois casos de estudo: duas cidades que  apresentam uma estratégia global que relaciona o planeamento urbano e a  agricultura, integrando as suas funções produtivas e ecológicas.

Casos de Estudo


A Toronto Food Strategy, apresentada em 2008, tem como principais objetivos  a criação de bairros “amigos dos alimentos”. Pretende centrar a discussão  sobre a proveniência e produção dos alimentos numa nova economia verde, capaz  de interligar a cidade e o campo.

Esta iniciativa foca-se em aspectos preocupantes da cidade de Toronto - mas  transversais a tantos outros lugares -, tais como a falta de segurança  económica dos produtores locais, a invasão de terrenos agrícolas por  empreendimentos habitacionais e turísticos, os grandes níveis de desperdícios  alimentares, desequilíbrios no acesso a alimentos saudáveis, taxas crescentes  de obesidade e de doenças crónicas e a reduzida segurança alimentar (food security).

A resposta a estas problemáticas passa por medidas como a preservação dos  solos destinados à agricultura no interior da cidade, a criação de programas  de incentivo e desenvolvimento da agricultura urbana nas coberturas de vários  edifícios da cidade, a atribuição de novos usos aos “brownfields” (solos onde  se encontram antigas indústrias abandonadas), a promoção da prática de  compostagem e a criação de uma comissão formada por cidadãos, cooperativas,  consumidores, governantes e grupos ambientais

Uma das principais ideias desenvolvidas foi a noção de “alimentação em  todas as políticas”. Isto é, a alimentação é uma questão que deverá ser  transversal, como um meio para alcançar uma cidade mais saudável, com uma  melhor qualidade de vida para a sua população, com uma maior produtividade,  uma maior capacidade de aprendizagem, um ambiente mais sustentável e  contribuindo para a segurança alimentar, a redução da pobreza e a inclusão  social. Podes encontrar toda a informação disponível em City of Toronto.

Já no outro lado do globo, no Reino Unido, atentamos no Bristol Food Plan,  que promove a produção e consumo de alimentos locais, menos dependentes de  transporte e por conseguinte mais económicos e frescos.

No relatório elaborado sobre a temática, e disponível em Bristol Green Capital, consta uma extensa análise sobre a cadeia  alimentar do Reino Unido, assente sobre seis vertentes principais: produção,  processamento, distribuição, revendedores, refeições e desperdício. É de particular relevância notar que 40% das  necessidades alimentares anuais do Reino Unido são supridas através da  importação de produtos, dos quais verificamos que 90% de fruta e 60% de  legumes disponíveis no mercado são importados. Tendo objetivos similares aos  expressos anteriormente - quanto à Toronto Food Strategy - a interpretação  do esquema abaixo revela que o foco central da estratégia alimentar de  Bristol reside na preocupação pela comunidade, fornecendo-lhe os alimentos  básicos e essenciais e protegendo os negócios alimentares locais.

Fonte: Bristol Green Capital


A abordagem à temática da agricultura urbana torna claro que as questões  demográficas, os desafios sociais, económicos e ambientais impõem reajustes  aos paradigmas alimentares.

Por fim, devemos recordar Gonçalo Ribeiro Telles, que numa reportagem à  RTP2 em 2013, se dirige a um agricultor afirmando que “o Homem do futuro, que  está a nascer por todo o lado, é o Homem que vai juntar a cidade e o campo”,  acrescentando que “(...) pessoas como o senhor que são tão urbanos como  aqueles que vão para o escritório todas as manhãs”.