Nos últimos anos tem-se assistido a um crescente desenvolvimento das áreas urbanas a nível global. Contudo, este desenvolvimento tem ocorrido num modelo distinto do que tradicionalmente acontecia - se antigamente encontrávamos cidades com limites bem discerníveis, hoje são mais dispersas, desagregadas e descontínuas - levando-nos a uma necessidade de reforçar a articulação entre espaços urbanos, suburbanos e rurais. Paralelamente, as alterações climáticas têm contribuído para a instabilidade dos sistemas de produção e cadeia alimentar, bem como para a formação de grandes contrastes climáticos entre regiões - provocando períodos longos de seca e de cheias e aumentando a imprevisibilidade dos eventos climatéricos.
Também a procura por uma alimentação mais saudável e que tenha em vista a preservação do ambiente tem despertado uma preocupação crescente relativamente ao atual sistema alimentar. Coloca-se em questão a volatilidade do preço dos alimentos, as questões ambientais relacionadas com os impactes negativos da produção agrícola em larga escala, a obesidade, a subnutrição e ainda a falta de segurança alimentar.
É neste cenário que surge o interesse em torno da agricultura urbana e das vantagens da sua aplicação nos mais variados contextos: Poderá ela servir como resposta à escassez e instabilidade no abastecimento alimentar das cidades? Poderá ela contribuir para uma forma mais saudável e sustentável de fornecer alimentação a populações citadinas? Por fim, poderá ela ajudar na criação de hábitos urbanos saudáveis e no equilíbrio ecológico de grandes áreas construídas?
A agricultura surgiu na Pré-História, quando o ser humano deixou de ser um animal exclusivamente recolector, e acompanhou o ritmo de crescimento das populações. Contudo, a partir da Revolução Industrial, surge uma separação entre duas realidades: por um lado, o trabalho rural e agrícola e, por outro, a condição urbana, associada à indústria, ao comércio e aos serviços. Esta cisão veio agravar as disparidades económicas entre grupos sociais. Complementarmente, a ausência de contacto da população urbana com o meio rural veio romper os conhecimentos que eram transmitidos entre gerações, tornando a população citadina alheia aos modos de produção e origem dos alimentos.
Com o surgimento de grandes cidades e metrópoles, a agricultura distanciou-se destes espaços com base em argumentos sanitários, de gestão urbana e mesmo estéticos. As novas tecnologias de transporte e de conservação dos alimentos possibilitaram a larga distância entre os locais de consumo e os de produção dos bens alimentares. A este fenómeno podemos também associar a intensificação da ocupação do solo em meio urbano, já que implica o valor económico do mesmo: este é tido como um obstáculo à prática da agricultura urbana, já que outras atividades e funções apresentam ser mais lucrativas.
Como exemplo, na imagem abaixo podemos observar o Grande Halle de la Villette, em Paris, um antigo matadouro reconvertido em centro cultural. O que anteriormente seria uma localidade vizinha à capital, com uma forte componente agrícola e industrial, foi totalmente reformulada aquando da intervenção de Haussmann - que propôs um plano higienista e previa a expansão da cidade de Paris. Os meios produtivos de sustento à urbe foram empurrados para as imediações.
Mas de que forma é que a relocalização da atividade agrícola tem implicações na contemporaneidade?
Irrefletidamente, o sistema alimentar é tido como uma questão exclusivamente rural e alheia ao espaço urbano. Todavia, o sistema alimentar tem um impacto profundo em questões como a saúde pública, justiça social, a energia, água, solo, transportes e o desenvolvimento económico - temáticas essas que importam ao bom planeamento urbano. A produção alimentar é capaz de transformar não apenas paisagens, mas também estruturas políticas, espaços públicos, sociedade e cidade.
Será fácil entendermos que as cidades, por representarem estruturas com um baixo ou inexistente contributo para o setor económico primário (agricultura, pecuária, extração de matéria prima, etc), se tornam necessariamente dependentes de um mercado externo, constituindo sistemas pouco resilientes a quebras na rede e com um funcionamento pouco sustentável, dada a infra-estrutura necessária à sua existência. Atualmente, cresce cada vez mais a intenção de dotar estas estruturas urbanas de uma capacidade produtiva que as torna mais autónomas, aumentando a sua resiliência e suscetibilidade. Neste âmbito surge a temática da agricultura urbana, que podemos definir da seguinte forma:
“A agricultura urbana está localizada dentro (intra-urbana) ou na periferia (periurbana) de uma localidade, cidade ou metrópole, e cultiva, produz, processa e distribui uma diversidade de produtos alimentícios e não-alimentícios, (re)utiliza largamente recursos humanos e materiais e, produtos e serviços encontrados dentro e ao redor daquela área urbana, e por sua vez, fornece recursos humanos e materiais, produtos e serviços para essa mesma área urbana.” – Luc J.A. Mougeot, in "Urban Agriculture: Concept and definition" (2000)
A agricultura é uma prática que se apresenta de formas variadas. Distinguida entre rural e urbana, toma designações plurais mediante a sua localização e natureza. Entre outros, estes tipos de agricultura diferenciam-se principalmente pelo tipo de local onde a atividade é exercida, o tipo de população, os sistemas de produção e a gestão ambiental dos resíduos que dela resultam. Além destes, podemos considerar o tipo de parcela agrícola de que se trata, o tempo disponibilizado à atividade, as tecnologias produtivas e a motivação pessoal.
Tenhamos como exemplo as hortas urbanas: são iniciativas que privilegiam a coesão social e a qualidade ambiental da cidade, com uma expressão crescente em território nacional. Algumas vantagens desta prática consistem no aproveitamento do lixo doméstico, no uso de espaços desocupados nas cidades, na possível geração de renda e, ainda, na constituição de uma atividade ocupacional.
No ano em que Lisboa foi eleita capital verde europeia, foram criados guias de boas práticas em bem fazer e produzir alimentos saudáveis. O município conta com 800 talhões de cultivo, em parques hortícolas municipais, acima identificados na figura. O acesso aos talhões é feito através de concurso público e distribuído conforme a proximidade de residência dos candidatos, onde só se pode praticar agricultura biológica. Os alimentos que nascem nestas hortas são utilizados sobretudo para consumo em casa e o seu objetivo passa por promover um modo de vida mais sustentável.
Um pouco por todo o mundo replicam-se as iniciativas de agricultura urbana. Aqui expomos alguns desses conceitos e movimentos:
locavore
O termo "locavore" surgiu em 2005 na Califórnia, resultado da contração das palavras “local” e “vore” (devorar). O conceito assenta na ideia de que ao consumir alimentos regionais o consumidor estará a contribuir para a economia e para a criação de postos de trabalho na comunidade.
potato movement
Movimento com expressão em cidades gregas, que visa aproximar os produtores dos consumidores em cadeias de abastecimento curtas, passando por eliminar intermediários no processo. Esta estratégia de política alimentar visa reforçar a justiça social.
slow food movement
Iniciado por Carlo Petrini em 1986, tem como mote o contrário de “fast food”. A filosofia por detrás assenta em conhecer a origem dos alimentos e o trajeto até ao consumidor.
food security
Conceito que se prende com o acesso e disponibilidade dos alimentos - no que toca ao poder de compra dos consumidores mas também na comercialização e distribuição dos alimentos.
food safety
Expressão que visa a qualidade dos alimentos, conservação e qualidade da produção, a utilização de fitofármacos durante a produção e a qualidade da água utilizada.
farmers markets
Iniciativa que tem como objetivo aproximar os produtores dos consumidores.
Além destes conceitos, salientamos dois casos de estudo: duas cidades que apresentam uma estratégia global que relaciona o planeamento urbano e a agricultura, integrando as suas funções produtivas e ecológicas.
A Toronto Food Strategy, apresentada em 2008, tem como principais objetivos a criação de bairros “amigos dos alimentos”. Pretende centrar a discussão sobre a proveniência e produção dos alimentos numa nova economia verde, capaz de interligar a cidade e o campo.
Esta iniciativa foca-se em aspectos preocupantes da cidade de Toronto - mas transversais a tantos outros lugares -, tais como a falta de segurança económica dos produtores locais, a invasão de terrenos agrícolas por empreendimentos habitacionais e turísticos, os grandes níveis de desperdícios alimentares, desequilíbrios no acesso a alimentos saudáveis, taxas crescentes de obesidade e de doenças crónicas e a reduzida segurança alimentar (food security).
A resposta a estas problemáticas passa por medidas como a preservação dos solos destinados à agricultura no interior da cidade, a criação de programas de incentivo e desenvolvimento da agricultura urbana nas coberturas de vários edifícios da cidade, a atribuição de novos usos aos “brownfields” (solos onde se encontram antigas indústrias abandonadas), a promoção da prática de compostagem e a criação de uma comissão formada por cidadãos, cooperativas, consumidores, governantes e grupos ambientais
Uma das principais ideias desenvolvidas foi a noção de “alimentação em todas as políticas”. Isto é, a alimentação é uma questão que deverá ser transversal, como um meio para alcançar uma cidade mais saudável, com uma melhor qualidade de vida para a sua população, com uma maior produtividade, uma maior capacidade de aprendizagem, um ambiente mais sustentável e contribuindo para a segurança alimentar, a redução da pobreza e a inclusão social. Podes encontrar toda a informação disponível em City of Toronto.
Já no outro lado do globo, no Reino Unido, atentamos no Bristol Food Plan, que promove a produção e consumo de alimentos locais, menos dependentes de transporte e por conseguinte mais económicos e frescos.
No relatório elaborado sobre a temática, e disponível em Bristol Green Capital, consta uma extensa análise sobre a cadeia alimentar do Reino Unido, assente sobre seis vertentes principais: produção, processamento, distribuição, revendedores, refeições e desperdício. É de particular relevância notar que 40% das necessidades alimentares anuais do Reino Unido são supridas através da importação de produtos, dos quais verificamos que 90% de fruta e 60% de legumes disponíveis no mercado são importados. Tendo objetivos similares aos expressos anteriormente - quanto à Toronto Food Strategy - a interpretação do esquema abaixo revela que o foco central da estratégia alimentar de Bristol reside na preocupação pela comunidade, fornecendo-lhe os alimentos básicos e essenciais e protegendo os negócios alimentares locais.
A abordagem à temática da agricultura urbana torna claro que as questões demográficas, os desafios sociais, económicos e ambientais impõem reajustes aos paradigmas alimentares.
Por fim, devemos recordar Gonçalo Ribeiro Telles, que numa reportagem à RTP2 em 2013, se dirige a um agricultor afirmando que “o Homem do futuro, que está a nascer por todo o lado, é o Homem que vai juntar a cidade e o campo”, acrescentando que “(...) pessoas como o senhor que são tão urbanos como aqueles que vão para o escritório todas as manhãs”.