Mobilidade suave é um termo que tem vindo a povoar cada vez mais os debates em torno do espaço público e do modo como nos deslocamos. Este conceito, muitas vezes também apresentado como “mobilidade sustentável, lenta, ativa, verde ou saudável”, engloba todos os meios não-motorizados, a uma velocidade reduzida, sem a emissão de gases poluentes e com uma ocupação do espaço público reduzida. Trocado por miúdos, falamos de andar a pé, de bicicleta, "trotinetas, skates, patins, entre outros” (APA, 2010).
Os modos suaves têm inúmeras vantagens: são promotores da boa saúde pública - envolvem atividade física, contrariando o sedentarismo -, são aliados na preservação do meio que nos rodeia - contribuem para a manutenção da qualidade do ar, reduzem o efeito estufa e o efeito de ilha de calor nas cidades e contribuem para a redução da poluição sonora.
À semelhança de muitos outros municípios nos últimos anos, a Câmara Municipal de Torres Vedras foi uma das pioneiras nacionais tendo criado, em 2013, a rede de bicicletas partilhadas “Agostinhas”. Atualmente, é composta por cerca de 20 estações, próximas das escolas, áreas comerciais e serviços públicos do centro da cidade. A sua utilização é feita mediante o pagamento de um passe anual, com o valor de 10€.
Contudo, a mobilidade suave apresenta alguns constrangimentos: as deslocações são feitas mais lentamente - em média, cerca de 5 km/h a pé e 15 km/h de bicicleta -, exigem algum esforço físico e são menos cómodas e agradáveis com calor extremo, chuva, gelo, neve ou ventos fortes.
Isto explica possivelmente o facto de ainda não ser o sistema de deslocação preferencial dos portugueses, especialmente nos percursos de pequena e média distância, onde mais facilmente seria adotada ou como complemento à utilização de outros meios de transporte partilhados, como é o caso do autocarro, do barco, do comboio ou do metropolitano.
No passado, Portugal, um país onde tendencialmente grande parte da população sempre viveu com baixos recursos, os modos suaves eram a opção disponível. Na Área Metropolitana de Lisboa (AML), a título de exemplo, era comum, até meados do século passado, percorrer a pé dezenas de quilómetros até à capital ou, por motivos profissionais - pense-se nas lavadeiras ou nos vendedores de hortícolas - partilhar um veículo fretado para o propósito - a galera - inicialmente movido à força animal, só muito mais tarde motorizado.
A taxa de motorização era substancialmente mais baixa em Portugal do que os seus vizinhos europeus até à década de 90, tendo quase triplicado nos últimos trinta anos - de 185,2 para 513,7 veículos ligeiros por mil habitantes -, para o que muito contribuiu a nossa entrada no espaço económico europeu e o investimento na rede viária (Pordata).
Para inverter esta tendência e criar uma resposta mais equilibrada aos nossos desafios sociais e ambientais contemporâneos é crucial, primeiro, pensar no modo como desenhamos o espaço público, garantindo que são criadas as condições para a readoção e/ou utilização segura e fácil destes meios suaves - desenhando passeios e ciclovias seguros ou criando zonas de estacionamento dedicadas às bicicletas e às trotinetas. Depois, é necessária a criação de incentivos à adoção dos mesmos - criando programas que facilitem a aquisição destes meios ou promovendo campanhas de divulgação que sublinhem as inúmeras vantagens de andar a pé ou de bicicleta.
A MUBI (Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta) elenca umas tantas, disponibiliza artigos científicos sobre o assunto - sendo um excelente ponto de partida para quem se quer informar mais sobre o tema -, dinamizando ainda inúmeros projetos em todo o território nacional como o “Bike to School” ou “Sexta de Bicicleta”.
Se as vantagens ambientais são possivelmente mais óbvias, as sociais são igualmente de nota: estes meios são mais democráticos, garantindo a mobilidade e o acesso ao espaço urbano a todos, já que implicam nenhum ou um baixo investimento inicial e estão acessíveis a praticamente todas as faixas etárias. Com uma rede de ciclovias completa e segura, as crianças podem, por exemplo, deslocar-se de modo independente entre a casa e a escola.
Para um conhecimento mais preciso acerca desta problemática podes consultar esta Tese de Mestrado do ISCTE intitulada “Mobilidade suave como ferramenta de reestruturação urbana: o caso SATU Oeiras”, do João Silva.
A nossa saúde fica também a ganhar, como explicado no site da MUBi https://mubi.pt/vantagens-da-bicicleta/
, já que andar ou pedalar são uma forma simples e prática de incluir atividade física na nossa rotina, “o que contribui também para uma maior regulação do peso, diminui a probabilidade de incidência de hábitos tabágicos, diminui a incidência de hipertensão ou de doenças cardiovasculares - a maior causa de morte em Portugal -”, regula a atividade intestinal e “contribui ainda para uma boa disposição psicológica”.
A bicicleta ganhou o seu espaço na discussão pública e urge fazer o mesmo na cidade. Uma pesquisa por notícias da Google com a palavra chave “ciclovia” ou “bicicleta” mostra-nos uma catadupa de notícias, todas elas recentes, que referem os diferentes projetos de expansão de ciclovias em diferentes municípios pelo país fora. A promoção da bicicleta tem sido e continua a ser uma das frentes de batalha de muitas autarquias. Segundo que o site Ciclovia, em Portugal há 1 645 km de ciclovia em Portugal.
Mais não seja pelo aparecimento de empresas de bike sharing, como o caso já abordado de Torres Vedras, que não só pela otimização do recurso (uma bicicleta é utilizada por diferentes pessoas ao longo do dia) como pela introdução de bicicletas elétricas (que permitem vencer a desafiante fisionomia do território da maior parte das cidades portuguesas), fazem com que este meio de transporte se comece a se fazer notar na paisagem da cidade.
O caminho ainda é longo, mas a verdade é que gradualmente vão sendo erodidas as duas principais barreiras no acesso à bicicleta: a segurança e o conforto. Segurança pela construção de ciclovias e a introdução de sinalização; e conforto pela introdução de bicicletas elétricas ou as chamadas cargo bikes no mercado. Veja-se ainda o exemplo do Município de Lisboa que tem introduzido sucessivos apoios financeiros à compra de bicicletas, nesta notícia do Observador.
Contudo, há ainda uma terceira barreira a ser ultrapassada: a cultural. São frequentes as referências a países como a Holanda e a Dinamarca, onde a percentagem de pessoas que se desloca de bicicleta se aproxima da percentagem de automobilistas portugueses. E isto acontece mesmo perante um clima que, em oposição ao português, parece ser um entrave à prática da mobilidade suave.
São certas características da sociedade portuguesa que surgem em defesa da utilização do meio de transporte automóvel por parte dos portugueses - como a distribuição das atividades pela cidade que leva a ter de se levar os filhos à escola ou a passar pela grande superfície comercial depois do trabalho a caminho de casa. Deve ser lembrado, contudo, que também estes argumentos são de ordem cultural - a falta de hábito das crianças se deslocarem de forma própria ou as compras que podem ser feitas na mercearia mais próxima.
Em Portugal, apenas 0,5% da população nas áreas metropolitanas se desloca de bicicleta (dados do INE de 2017) A mudança de mentalidade da população será a última barreira no acesso à bicicleta. Até porque a proximidade ao seu mercado já existe: isto porque em 2016, Portugal era o maior exportador de bicicletas da Europa (Público).
Promover a mobilidade suave não tem necessariamente de passar pela construção de ciclovias. Uma medida simples para levar as pessoas a deslocar-se a pé ou de bicicleta passa por tornar as ruas mais seguras e atrativas - tornando-as pedonais, tornando-as zonas de coexistência ou apenas reconfigurando o trânsito automóvel.
Ao tornar ruas pedonais impede-se a passagem do trânsito automóvel (excepto para cargas e descargas e, nalgumas situações, o acesso ao domicílio), libertando todo o espaço da rua para os peões. O novo PDM do Porto tem na criação de zonas pedonais uma das suas agendas estratégicas. Contudo, deverá ser tido em conta o impacto negativo deste tipo de alterações em certos tipos de comércio e serviço, mais operativos e menos recreativos, e as alterações que trazem à rede viária, podendo criar sobrecargas automóveis (em deslocação e estacionados) noutras vias.
Outra tendência que se tem vindo a sentir na Europa é a criação de zonas de coexistência. Estas passam tão simplesmente pela alteração do paradigma na relação peão-automóvel: na zona de coexistência, é o peão que tem prioridade sobre o automóvel. Isto leva assim a uma reconfiguração do perfil da rua, com a extinção da zona de passeio e a introdução de formas de abrandamento do trânsito automóvel (como o estreitamento da via ou pavimento em calçada) e uma restrição da velocidade máxima até 20km/h. A existência das zonas de coexistência já está prevista no Código da Estrada desde 2013 (Lei n.º 72/2013) e é uma tendência ou muitos outros países europeus.
Por último, a simples reconfiguração do trânsito automóvel de forma a não comportar trânsito de atravessamento pode promover a utilização de certas ruas pelos peões. Veja-se o caso da Rua Dr. Mário Sacramento, em Aveiro, para a qual a MUBi propunha “eliminar a sua funcionalidade de via de atravessamento e distribuidora de tráfego automóvel para o centro da cidade, valorizando a sua qualidade de espaço de vivência urbana, residencial e comercial”. Esta ideia de "acalmia" de tráfego tem sido bastante discutida pelas antagens diretas que traria: torna as ruas mais aprazíveis e seguras; reduziria os ainda comuns acidentes entre carros e peões; evita, acima de tudo, os acidentes que põem em risco a vida da pessoa - isto porque os riscos de morte de um embate com um veículo a 20 km/h são significativamente menores do que um a 50 km/h. Acerca deste assunto recomendamos vivamente a entrevista a David Vale do "É apenas Fumaça".
Outra medida que tem impacto no número de pessoas a andar na cidade é a promoção do transporte público. Este, ao contrário do automóvel, raras vezes permite a uma pessoa ter uma trajectória porta-a-porta directa e através de apenas um meio de transporte, exigindo que a pessoa se desloque a pé e, por vezes, de bicicleta, até e desde a paragem.
A relação contrária também acontece: a garantia de uma boa mobilidade suave promove a utilização de transporte público. Uma das conclusões do artigo “The access journey to the railway station and its role in passengers’ satisfaction with rail travel”, redigido no contexto holandês, afirma que para aumentar a propensão de utilização do comboio na população, conta muito mais a qualificação do acesso às estações do que a melhoria da viagem em si (tempo de viagem, conforto das carruagens, etc).
Com isto percebemos que existe uma relação umbilical entre transporte público e mobilidade suave: uma pessoa que utilize o primeiro vai, inevitavelmente, utilizar o segundo; por outro lado uma pessoa que utilize o segundo está muito mais predisposta a usar o primeiro.
O projecto da Linha Intermodal Sustentável é disso um exemplo. Com ele pretende-se criar um metro de superfície “amigo do ambiente”, que una os concelhos de Oeiras, Lisboa e Loures, e é notória a preocupação pela ligação a “corredores dedicados aos modos activos” de mobilidade. Esta ligação acontece com propósitos recreativos mas também funcionais.
Em suma, a consciência acerca dos novos modos de deslocação sustentável deverá ter na mobilidade suave a sua maior matéria prima visto que não pode existir sem ela. A garantia de ruas atrativas, locais confortáveis e continuidade de percursos tem de ser um dos principais objectivos das autarquias. Sem ele, a cidade continuará a pertencer ao transporte privado.
Para saber mais acerca deste tema e outros paralelos, aconselhamos alguns conteúdos: Entrevista do "É apenas Fumaça" a David Vale, sobre mobilidade e dependência automóvel; É P'ra Amanhã - um programa onde se fala de energia e mobilidade e onde são discutidas, entre outras questões, a mobilidade suave e a"mobilidade como serviço" (MAAS); Do zero - episódio 7 - este podcast apresenta uma visão muito pessoal mas bem sistematizada da mobilidade urbana no âmbito da sustentabilidade ecológica.