Nuno Portas (1934 - ), arquiteto português nascido em Vila Viçosa, inicia o seu percurso nas Universidades de Lisboa e Porto. Antes de completar os estudos, começou a colaborar com Nuno Teotónio Pereira, com quem mais tarde ganhou o prémio Valmor em 1975 com a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa.
O seu percurso é marcado por intervenções plurais, tais como a ocupação do cargo de Secretário de Estado da Habitação e do Urbanismo - que, neste período, incentivou a criação de Gabinetes de Apoio Local (GAT) e do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) -, a conceção de planos , como o da Expo 98, o Plano Intermunicipal de Madrid e o Plano da Zona Central do Rio de Janeiro, além da coordenação de um Centro de Estudos e a formulação de um Mestrado em Planeamento e Projeto do Ambiente Urbano. É autor de inúmeras obras de referência no que diz respeito ao planeamento urbano, das quais destacamos "Políticas Urbanas" e "A Cidade como Arquitetura".
Esta publicação focar-se-á, não na figura de Nuno Portas, mas em parte do legado que deixou em certas áreas de atuação em Portugal. Quis-se aprofundar certas temáticas, de forma a interessar quem interessado se possa tornar. Contudo, alertamos, nem tudo é falado: desde o trabalho no Atelier da Rua da Alegria, às suas investigações no LNEC, passando pelo projeto para o Campus de Aveiro e a sua estada em Madrid, onde participou no já mencionado Plano Intermunicipal da cidade e viu nascer a figura da “Área Metropolitana” - coisa que em Portugal nunca chegou a existir com franqueza.
Pretendemos, contudo, não estender a publicação mais dos 10 minutos de consulta. Consulta a que apelamos. E apelamos em igual medida a posteriores leituras acerca do trabalho deste político e arquitecto que, a par de nomes como Jan Gehl e Peter Hall, foi galardoado com o prémio Sir Patrick Abercrombie - que é, como se costuma dizer, o “Nobel” do urbanismo. Acerca de Nuno Portas, uma coisa é certa: fica ainda muito por dizer.
A Cidade como Arquitectura surge em 69, numa década polvilhada de obras seminais do pensamento da cidade - veja-se o exemplo de Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas de Jane Jacobs, A Cidade na História de Lewis Mumford e A Arquitectura da Cidade de Aldo Rossi (este último é, aliás, onde Portas vai buscar a referência para o seu título). Nesta obra, considerada charneira no pensamento de Nuno Portas e que vai servir de substrato a toda o seu trabalho posterior, faz-se acima de tudo uma apologia do pensamento da cidade como um processo coletivo e não objeto individual - processo que dependente de um desvincular da conceção da cidade como órgão, ao invés de organismo.
O arquiteto, tratando-se de um generalista e coibindo-se de qualquer especialização, acha sua função realizar “a” síntese da cidade - a mãe de todas as abordagens -, concebendo-a como produto acabado e completamente estanque. Contudo, e como não poderia deixar de ser, qualquer resultado deste pressuposto é imaturo. No livro persiste sempre a ideia de uma cidade que é ao mesmo tempo “produto e obra”, só alcançável através de uma abordagem interdisciplinar e que nos levará a “uma” síntese possível - e mesmo esta síntese não é concebida acerca do “objeto acabado” mas do processo - o meta-projeto (Portas, 1969).
Esta ideia de meta-projeto consubstancia-se numa acção-reacção entre implementação e reflexão. Ou seja, procura-se um faseamento de projetos, guiados por um “desígnio” comum, que carecem sempre de uma reflexão após a sua execução. A conceção da cidade afasta-se assim da crença de uma “cidade-de-uma-só-peça”, conseguida a custo de “guinadas ou lampejos «geniais»” (Portas, 1969: 31) de arquitetos, e aproxima-se da ideia de “reflexividade” do sociólogo Ascher, que surge bem explicada na tese “A Metodologia de Nuno Portas - Um Percurso entre Arquitetura e Política”, da autoria de Carlos Brazão, do IST.
A 16 de Maio de 1974 Nuno Portas é empossado como Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo (um mês após a Revolução) e onde se mantém até Abril de 1976. Deste curto mandato fica o lançamento de programas de apoio à habitação com duas naturezas distintas: por um lado, fortaleceu-se a promoção direta da habitação de cariz municipal ou através de cooperativas - destacando-se aqui as Cooperativas de Habitação Económica e o Serviço Ambulatório de Apoio Local (SAAL); por outro, procurou-se a promoção de habitação de uma forma indireta, tentando envolver o sector privado na equação através de estímulos e vantagens para a execução de habitação a custos controlados - nasciam assim os Contratos de Desenvolvimento para Habitação (CDH).
Na essência, estes CDH consistiam na resposta a dificuldades sentidas desde o início do século XX, quando já se assistia a um desinteresse dos proprietários de terrenos na construção de habitação de rendas económicas. Isto acontecia devido ao grande investimento feito, que não colheria frutos com habitação acessível já que o juro remuneratório para os capitais investidos nos terrenos e materiais de construção eram cada vez mais caros.
Já nessa altura se discutia a forma como o Estado poderia tentar garantir a oferta de habitação de forma indireta: acreditava-se que a melhor forma era através de uma intervenção no mercado, “animando” os proprietários para o investimento em casas de rendas económicas com “auxílios justos e valiosos”. Um exemplo desta prática foi a Lei de Casas Baratas, publicada em Espanha em nada mais nada menos que 1911, onde se delineava um princípio simples: o Estado devia conceder terrenos gratuitos, isenções fiscais temporárias e constituição livre de encargos, entre outras coisas, às sociedades criadas para edificar casas económicas (Agarez, 2020).
Contudo, os CDH são apontados como exemplos das dificuldades sentidas em envolver as entidades privadas. O programa, que pretendia “promover de forma autónoma a oferta de habitações destinadas ao mercado de venda com custos limitados” (Agarez, 2020), foi sendo reformulado sucessivas vezes visto não se considerar alcançar o resultado esperado. As suas iniciativas estão circunscritas à área de Lisboa e a um número reduzido de empresas. Apelava-se à necessidade de “flexibilizar e desburocratizar” o processo de apoios, de forma a atingir o dinamismo necessário, mas tal nunca aconteceu. O programa foi, ainda assim, extinto apenas em 2013.
Como estucada final na credibilidade da relação entre Estado e privados concebeu-se a Bonificação de Crédito à Habitação por parte do Estado Central. Desta feita facilitava-se o acesso a empréstimos bancários a quem procurasse a aquisição de habitação própria. Dá-se origem a este processo em 1976, com o restabelecimento da democracia e após a saída de Nuno Portas do SEHU. Regista-se que até à sua extinção em 2002, esta medida constituiu cerca de 75 % dos fundos alocados pelo estado ao acesso à habitação (Agarez, 2020).
É importante entender que com o recurso à bonificação de créditos, existe uma inibição por parte do Estado na procura de boas-práticas para soluções coletivas de habitação a longo prazo. Isto porque assim se intervém no apoio ao indivíduo e se deixa ao seu critério a decisão do investimento, muitas vezes competindo por alojamento com pessoas dos mais diversos estratos sociais. Esta solução, para além de constituir um mau investimento por parte do estado central (porque a bonificação aumenta a procura, ela inflaciona também os preços praticados), deixa de fora franjas da sociedade para quem nem a bonificação de créditos é suficiente.
A valorização deste tipo de soluções em detrimento de soluções mais estruturadas denota um certo imediatismo de resultados, sendo que o Estado assim apoiava a fase final do processo do acesso à habitação e não a sua fundação. Saíam beneficiadas as famílias que por si já tinham capacidade de aceder à habitação, e não a construção de casas já em si pensadas para pessoas de baixos recursos. Morria assim a ideia de «apoio à pedra» - entenda-se, à construção - que Portas defendia, para se focar no «apoio à pessoa», que trazia claros benefícios políticos. Neste episódio de A Casa e a Cidade, o Arq. Manuel Salgado fala acerca desta problemática.
Talvez uma das mais importantes contribuições teóricas de Nuno Portas seja o estudo, a nível português, daquilo que se convencionou chamar “urbanização difusa”. Ao analisar as dinâmicas da região norte-litoral do país, ele entendeu não corresponderem intrinsecamente aos padrões convencionais de uma metrópole, dada a tendência de uma urbanização dispersa e policêntrica, com muita da vida das populações a acontecer “entre cidades”.
No livro “Políticas Urbanas - Tendências, estratégias e oportunidades”, que escreve em conjunto com Álvaro Domingues e João Cabral, estabelece-se a divisão da condição urbana em três realidades distintas: conurbações metropolitanas; conurbações não metropolitanas (originárias de processos de urbanização difusa); e cidades médias.
As conurbações metropolitanas correspondem, inevitavelmente, às regiões da Grande Lisboa e do Grande Porto, onde existe uma posição hegemónica por parte de uma cidade em torno da qual se dá um crescimento espraiado numa condição satélite a essa cidade, chegando muitas vezes a engolir conjuntos urbanos envolventes de menor escala. É de relevar, contudo, que a cidade do Porto nunca acumulou funções terciárias e serviços especializados de importância capital como Lisboa, o que faz com que a sua AM tenha dinâmicas distintas da “metropolização convencional”, que muito se relaciona com o que se falará a seguir.
O caso das conurbações não-metropolitanas nasce do surgimento quer de habitação quer de postos de trabalho fora dos núcleos urbanos convencionais, adotando diferentes tipos de modelos de aglomeração: densificação linear ao longo de estradas nacionais e municipais (veja-se o caso da N1 ou da N125, no Algarve); reforço de povoações já existentes; nucleações em torno de pontos estratégicos da rede viária; densificação de um tipo de povoamento rural historicamente disperso.
Em Portugal admite-se a existência de três conurbações estabelecidas deste género - a Atlântica Norte ou do Noroeste Litoral (Aveiro - Póvoa do Varzim); Oeste Litoral (Torres Vedras-Pombal) e Sul Algarvio (Portimão-Vila Real de Santo António) - sendo que a área correspondente à conurbação do NO Litoral (onde se inclui a AMP) teve, entre 1991 e 2001, um crescimento populacional de cerca de 11%, sendo muito superior à média nacional (5,0%), da AML (5,6%) e da própria AMP (8,0%) (Domingues, 2006).
Representarão estas conurbações novas formas de ocupação do território? Representam, pelo menos, um novo léxico, e, por extensão, uma nova forma de olhar o problema. Contudo, ainda que Portas escrevesse acerca destas estruturas territoriais já na década de 80, ainda hoje o termo “conurbação” é mal entendido - se conhecido de todo. Estaremos nós ainda presos à visão “maniqueísta” de que falava Portas (1986)? Essa que nos educou exclusivamente a olhar a cidade concentrada como boa e a periferia dispersa como má?
Entrando neste campo, dever-se-á ter em conta as implicações da ocupação extensiva do território. O que ainda não se disse aqui, mas ter-se-á de dizer, é que a “urbanização difusa” é filha do automóvel, uma vez que a diluição das atividades no território apenas é possível através do acesso incondicional que o carro dá. Também não se disse que a dispersão das atividades leva a uma maior necessidade de mobilidade, de infraestrutura e a um consumo excessivo de solo. Estas preocupações são conhecidas.
Contudo, a negação à partida do princípio da dispersão territorial mais não é do que uma “excessiva homologação do modelo” (Portas et al., 2003). Diferentes necessidades podem ser atendidas a escalas distintas e com funções diversas. Até porque das “conurbações” tem surgido um indicador ao qual as agendas portuguesa e europeia têm estado bastante atentas: o policentrismo.
O termo policentrismo tem surgido frequentemente nos relatórios da ESPON por se acreditar que a melhoria deste indicador, em cada país, está relacionado com um desenvolvimento regional mais equilibrado, uma maior coesão territorial, a integração de todas as regiões no mercado global e até para o desenvolvimento sustentável (ESPON, 2005). Locais da Europa, como o já famoso Randstad holandês, têm mostrado dinâmicas intermunicipais que os fazem competir economicamente com grandes metrópoles como Londres e Paris sem, contudo, reunirem os mesmos problemas de congestionamentos, dificuldade de acesso à habitação e gentrificação.
Tome-se o exemplo das conurbações não-metropolitanas portuguesas já mencionadas, onde cidades como Guimarães, Leiria ou Faro têm assistido, por norma, a um crescimento populacional e o fortalecimento de dinâmicas económicas muito graças à maior interação intermunicipal. Contudo, os problemas ainda são muitos, complexos e de demorada resolução. Mas muito passa pela perceção do que é, de facto, a condição urbana portuguesa e de que forma a desadequação das nossas estruturas administrativas tem desaproveitado o potencial de crescimento de regiões inteiras.
Escrito há 17 anos, o livro “Políticas Urbanas - Tendências, Estratégias e Oportunidades”, de Nuno Portas, Álvaro Domingues e João Cabral (2003) é, ainda, da maior pertinência para quem quiser continuar este tema.
Referências:
Agarez, Ricardo Costa (2020) “A Habitação Apoiada em Portugal”. Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Domingues, Álvaro (coord.) (2006) “Cidade e Democracia - 30 Anos de Transformação Urbana em Portugal”. Lisboa: Argumentum
ESPON (2005), “1.1.1. Potentials for polycentric development in Europe”. Project report - revised version. Brussels/Stockholm: ESPON & Nordregio.
Milheiro, Ana Vaz; Afonso, João (2005) “Nuno Portas, Prémio Sir Patrick Abercrombie UIA 2005”. Ordem dos Arquitectos e Caleidoscópio - edição e Artes Gráficas. 2ª Edição.
Portas, Nuno; Domingues, Álvaro; Cabral, João (2003) “Políticas Urbanas – Tendências, estratégias e oportunidades”. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Portas, Nuno (1986). “Modelo territorial e intervenção no Médio Ave”. Sociedade e Território, 5, 8-13.
Portas, Nuno (1969) “A Cidade como Arquitectura”. Livros Horizonte. 4ª Edição.