Pode-se dizer que, em Portugal, o termo regionalização já ganhou o estatuto de chavão no discurso político. De vez em quando voltamos a ouvir falar deste termo, surgindo num artigo de opinião ou num debate televisivo. Contudo, se nos inquirirmos acerca do que este termo significa, podemos ter um resultado inesperadamente pouco consensual entre várias pessoas. Afinal, o que significa a regionalização? Fará sentido falar dela em Portugal?
Em primeiro lugar, valerá a pena clarificar os termos que se vão utilizar neste texto. Quando falamos de regionalização falamos de uma partição do poder central em regiões, retirando assim hegemonia a uma centralidade e diluindo a capacidade decisória no território de uma forma aparentemente mais justa e equitativa. Podemos então admitir que, neste determinado contexto, o termo regionalização pode ser visto como sinónimo de “descentralização”, dado que um leva, inevitavelmente, ao outro.
Outro termo que se deverá ter em conta é o de “deslocalização”. Neste artigo do Observador, Fausto de Quadros esclarece porque é errado confundir este termo com regionalização, dado que a colocação de dependências do Estado Central noutras localidades (como a tão falada passagem do Tribunal Constitucional para Coimbra) não constituiria um real processo de regionalização, uma vez que estaríamos a mudar a centralidade e não a diluí-la.
Posto isto, porque será tão importante falarmos de regionalização? Com que objetivo se defende a regionalização num país com as dimensões e a história de Portugal? Não levará isto, como se costuma pensar, apenas ao aumento da máquina estatal e benefício de políticos?
Este debate é já antigo. Na constituição portuguesa de 1976 a descentralização é estabelecida como uma prioridade. O artigo 6º, que contempla o Estado Unitário, define “O Estado é unitário e respeita na sua organização e funcionamento o regime autonómico insular e os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública”. Portanto, a descentralização democrática da administração pública surge num dos primeiros pontos da nossa Constituição.
Já no relatório de 2019 da Comissão Independente para a Descentralização, é dito que “Portugal é um país pequeno, mas bastante diversificado e com significativas assimetrias territoriais.” (p. 43). A ideia de que Portugal é um país com uma discrepância territorial grande é corroborada por dicotomias ainda prevalecentes - norte-sul e, principalmente, litoral-interior -, criando um país a duas velocidades distintas.
Também no relatório da ESPON - a plataforma europeia dedicada à promoção do desenvolvimento territorial - de 2005, Portugal é apontado como um dos países mais monocêntricos da Europa e que apresenta maiores disparidades territoriais, contribuindo para isso a ausência de uma escala regional, fazendo com que o país funcione através de duas escalas muito distantes: a local e a central.
Contudo, de que forma é que a regionalização/descentralização poderia inverter tendências de desenvolvimento desigual?
A pergunta faz sentido, uma vez que descentralizar não é a panaceia de todos os problemas territoriais. Contudo, uma contribuição direta da regionalização é a coligação positiva daqueles territórios que partilham os mesmos problemas, criando estruturas mais capacitadas de responder aos problemas da região por, por um lado, não estarem tão distantes do território como o estado central (governo), mas, por outro, não estarem tão segmentadas e enfraquecidas como o poder local (municípios).
Este pressuposto encontra respaldo no princípio da subsidiariedade, expresso na Carta Europeia da Autonomia Local, de 1985. Esta define, tão simplesmente, que as tarefas públicas, bem como as decisões políticas, devem ser realizadas ao nível territorial mais próximo dos cidadãos, sempre que possível. Seguindo este princípio, a regionalização nada mais é que o fortalecimento da democracia local.
No relatório “Assimetrias e Convergência Regional”, da Associação Comercial do Porto, refere-se ainda que a centralização, tanto da despesa como das dependências do estado, numa dada região, não favorecem a resiliência do território a choques económicos nem a adequação dos investimentos às especificidades de cada região. Contudo, este é um argumento que poderá ir mais ao encontro da “deslocalização”, já falada, do que propriamente de um processo de descentralização.
Por último, a regionalização não tem como fim único a defesa de zonas (chamadas) periféricas, alheias aos dois grandes polos de atração do território português - as Áreas Metropolitanas do Porto (AMP) e Lisboa (AML) -, trazendo vantagens também a estas. Por exemplo, ao capacitarmos organismos como as áreas metropolitanas - hoje em dia, organismos de funções praticamente honoríficas e em nada comparáveis às equivalentes espanholas, por exemplo - com uma franca capacidade de decisão e atuação, evitaríamos estratégias desencontradas e muitas vezes contraditórias de municípios vizinhos como Lisboa, Oeiras e Loures, nos mais diferentes setores de atuação como o transporte ou a política de habitação.
Contudo, em Portugal não existem já estruturas regionais ou supramunicipais? A resposta é sim. E não.
Sim porque em Portugal existem dois tipos de estruturas regionais e supra-municipais: as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) - equivalentes às cinco regiões continentais (Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve) e não incluindo as duas regiões autónomas dos Açores e da Madeira, que se regem por um quadro administrativo distinto - e as Comunidades Intermunicipais (CIM) - que encontram correspondência aos mais familiares Distritos em algumas situações, mas nem sempre: existem 20 distritos e 25 CIM.
As CCDR, instituídas na sua forma original desde 2003, correspondem a “serviços periféricos da administração direta do Estado, dotados de autonomia administrativa e financeira” (Artigo 1º do DL n.º 228/2012, de 25 de Outubro). Têm como função contribuir na definição de políticas a nível regional, apoiar tecnicamente os seus municípios (por exemplo, aprovando os Planos Diretores Municipais) e articular as diferentes políticas territoriais e setoriais.
Já as CIM - que no caso da região de Lisboa e do Porto são substituídas por Áreas Metropolitanas - apenas foram estabelecidas em 2013, através da lei nº 75/2013 e são associações voluntárias entre Municípios, tendo por objetivo a promoção do planeamento e da gestão da estratégia de desenvolvimento dos municípios nos diferentes setores, bem como a articulação dos investimentos municipais e o planeamento de algumas competências públicas de caráter supramunicipais.
Mas também podemos afirmar que, em Portugal, não existe uma verdadeira regionalização, uma vez que tanto as CCDR como as CIM não correspondem a uma verdadeira “separação vertical de poderes” (ideia explanada no livro “Os Níveis de Governo dos Países da Europa”, de António Montalvo, editado pela Almedina). Ou seja, cabe a estas estruturas apenas a participação, articulação e promoção de competências que são verdadeiramente dos municípios ou do governo, não os substituindo em nenhuma função.
Segundo António Covas, neste artigo do Observador, uma verdadeira regionalização em Portugal foi substituída por um - bem mais conservador - “diálogo regional”, deixando o verdadeiro poder político onde sempre existiu - no estado central e nos municípios.
A isto se soma a questão de que as eleições, tanto para um órgão como para outro, serem feitas de forma indireta, não concedendo grande legitimidade democrática aos seus representantes junto da população. Por tudo isto, podemos considerar que as estruturas regionais e supramunicipais existentes em Portugal não constituem uma verdadeira regionalização.
Para existir uma verdadeira regionalização deve, por isso, existir uma separação de competências pelos diferentes níveis territoriais. É por isso que, quando se fala da regionalização como uma forma de duplicar cargos administrativos e favorecer elites políticas (a típica conversa dos “caciques”), se deve ter em conta o que o conceito da subsidiariedade estabelece não a duplicação de funções, mas sim a sua distribuição, favorecendo sempre a escala mais próxima do cidadão.
Olhemos o caso dinamarquês, por exemplo, onde a gestão das unidades de saúde está assente nas suas 5 regiões administrativas: está a seu cargo a construção, manutenção e propriedade de todos os hospitais. Também nos Países Baixos, as suas 12 províncias são responsáveis por questões tão variadas como o financiamento de habitação municipal, a proteção do ambiente, a construção de diques, eclusas, pontes e canais ou ainda a luta contra os incêndios.
Para caminharmos em direção à regionalização, teríamos de estar preparados para retirar competências a quem já as tem. Teríamos de ser capazes de migrar funções e destruir antes de criar. Mas seremos capazes disso? E de que funções falamos exatamente? Conseguimos ir ao detalhe?
Ricardo Paes Mamede, neste artigo para o Diário de Notícias, refere que é exatamente chegado a este tipo de decisão que o consenso entre os diferentes regionalistas esmorece:“Se há áreas em que a maioria concorda com a concentração do poder nos municípios (por exemplo, a ação social, a gestão do património cultural, ou a promoção do desporto e do recreio), há outras em que as opiniões se dividem (por exemplo, o planeamento da rede de escolas e dos equipamentos sociais, o transporte escolar, a gestão das águas e da floresta, o turismo, a atração de investimento ou a gestão dos fundos europeus).”
António Rebordão Montalvo, membro do Grupo de Peritos Independentes do Conselho da Europa sobre a Autonomia Local e Direito das Autarquias e autor do livro Os Níveis de Governo dos Países da Europa - que já referimos aqui -, deu uma entrevista ao Público onde explica a necessidade de diferenciar as competências e poderes dos municípios tendo como critério a sua população. Ou seja, os municípios passariam a ter um conjunto de funções próprias, que cresceriam conforme a população aumentasse.
Quanto à existência de municípios com dimensões muito reduzidas, que os levaria a ficar enfraquecidos nas suas capacidades e competências, Montalvo refere os exemplos de Itália, França e Espanha, onde foi criada uma obrigatoriedade de associação entre municípios nestas condições, de forma a terem acesso, através da escala intermunicipal, às mesmas capacidades municipais que outros concelhos de maiores dimensões.
A solução proposta por Montalvo passa, por isso, por uma resposta adaptada a cada situação. Segundo ele, dada a falta de homogeneidade do território, não faz sentido que todas as suas partes sejam geridas pelo mesmo tipo de estrutura autárquica: existem diferenças incontornáveis entre municípios metropolitanos e municípios rurais, por exemplo. É referido ainda como, na maior parte dos países europeus, existem estruturas excecionais de governo para cidades capitais de grandes dimensões.
Contudo, o processo de descentralização em curso segue a ideia de unidades homogéneas, de duplicação de competências e de “diálogo regional” ao invés de regionalização. Parece que Portugal tarda em pensar nos problemas de forma estrutural. Terminando com o corolário da entrevista a Montalvo, a “descentralização foi mal pensada, mal trabalhada e mal explicada”.
Aconselhamos ainda a entrevista a Filipe Teles, no programa “A Prova Oral” da Antena 3, onde apresenta o seu livro, “Descentralização e Poder Local em Portugal”, publicado pela FFMS.